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[Opinião] Publicidade danosa à criança

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por Dalmo de Abreu Dallari*

O controle da publicidade dirigida à criança vincula-se à questão da liberdade de comércio e não à liberdade de expressão, que é um direito fundamental da pessoa humana. Essa distinção é essencial, pois retira a base jurídica dos que, interessados prioritariamente no comércio, tentam sustentar a alegação de inconstitucionalidade das normas legais e regulamentares que fixam diretrizes para a publicidade dirigida à criança. Essa diferenciação entre o direito à liberdade da publicidade com o objetivo de promoção de vendas e, portanto, como capítulo da liberdade de comércio, e as limitações da publicidade que vise a captação de vontades, de maneira geral, afetando negativamente direitos fundamentais da pessoa humana, foi ressaltada com grande ênfase e com sólido embasamento jurídico pela Corte Constitucional da Colômbia, em decisão proferida no final de 2013.  A questão que suscitou o pronunciamento da Corte Constitucional colombiana era a publicidade do tabaco e, tomando por base justamente a diferença entre o direito à publicidade comercial e o direito de livre expressão, que é atributo da pessoa humana universalmente consagrado, a Corte rejeitou a alegação de inconstitucionalidade das limitações jurídicas à publicidade comercial, para a proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Essas considerações são necessárias e oportunas no Brasil, para que se dê efetividade aos direitos fundamentais das crianças, enquanto seres humanos, assim como aos direitos e garantias que lhes são especificamente assegurados em documentos jurídicos internacionais e, expressamente e com grande ênfase, na Constituição brasileira de 1988. Como ponto de partida para as considerações jurídicas sobre a constitucionalidade das limitações legais e regulamentares à publicidade dirigida à criança, vem muito a propósito lembrar o que dispõe o artigo 227 da Constituição: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida..., à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-las a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Um dos instrumentos jurídicos tendo por objetivo garantir a efetividade desses dispositivos constitucionais é o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), órgão vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, criado pela Lei nº 8.242, de 1991. Entre suas atribuições está a competência para “elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente”, incluindo-se aí, evidentemente, a competência para o estabelecimento de diretrizes visando dar efetivo cumprimento às obrigações internacionais assumidas pelo Brasil em relação aos direitos da criança e do adolescente, de modo especial na Convenção sobre os Direitos da Criança, incorporada ao sistema normativo brasileiro em 1990. A isso tudo se acrescentam inúmeros dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, lei número 8.069, também de 1990, cujo artigo 72 dispõe que as obrigações nele previstas não excluem da prevenção especial outras decorrentes dos princípios por ela adotados.

Foi justamente no sentido de dar efetividade a essas disposições jurídicas, que configuram obrigações do Estado brasileiro, que o Conanda editou a Resolução 163/2014, de 4 de Abril de 2014, fixando diretrizes sobre a publicidade comercial que é dirigida maliciosamente à criança, explorando suas fragilidades e, assim, ofendendo seus direitos fundamentais, induzindo-a a sentir a necessidade de consumir determinados bens e serviços, tendo o objetivo prioritário de proporcionar lucro aos anunciantes. A Resolução considera abusivo o direcionamento da publicidade e de comunicação mercadológica à criança, “com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”. São abusivos os anúncios que contêm linguagem infantil, trilhas sonoras de músicas infantis, desenho animado, promoção de distribuição de prêmios ou brindes colecionáveis, com apelo ao público infantil entre outros aspectos.

Voltando à observação inicial, essa Resolução do Conanda tem perfeito enquadramento nas disposições constitucionais e contribui para que o Brasil dê efetividade às obrigações jurídicas assumidas internacionalmente com relação à proteção dos direitos e da dignidade da criança e do adolescente. Não tem cabimento a alegação de inconstitucionalidade da Resolução 163/2014, que é expressão do cumprimento das competências, que são direitos e obrigações jurídicas do Conanda e que, efetivamente, é um passo importante para o afastamento de abusos que são frequentemente cometidos na publicidade comercial dirigida ao público infantil. A proteção e a busca de efetivação dos direitos da criança e do adolescente devem ter, por determinação constitucional, absoluta prioridade sobre objetivos comerciais, não se podendo admitir que a liberdade de comércio se confunda com a liberdade como direito fundamental da pessoa humana. A aplicação da Resolução do Conanda será extremamente valiosa, contribuindo para que na vida social brasileira a criança e o adolescente sejam tratados como prioridades.

* Dalmo de Abreu Dallari é jurista. - Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo. , Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo. .

[Fonte: Jornal do Brasil]

 

Entenda a resolução que define a abusividade da publicidade infantil

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O que é o Conanda?


O Conanda é um órgão colegiado de caráter normativo e deliberativo, vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, que atua como instância máxima de formulação, deliberação e controle das políticas públicas para a infância e a adolescência na esfera federal, fiscalizando o cumprimento e a aplicação eficaz das normas do ECA.


Criado pela Lei n. 8.242 de 12 de outubro de 1991, possui, especificamente, a competência de “elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução”, ressaltando, assim, sua função de controle de todo o Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil, do qual fazem parte toda a sociedade e todas as instituições do Estado.


Quem compõe o Conanda?


Composto de forma paritária entre representantes da sociedade civil organizada ligados à promoção e proteção dos direitos da criança e representantes dos ministérios do governo federal.


- representantes titulares:


Pastoral da Criança, CNBB - Pastoral do Menor, Inspetoria São João Bosco (Salesianos), Federação Nacional das APAES, UBEE - União Brasileira de Educação e Ensino (Marista),CFP - Conselho Federal de Psicologia: Esther Maria de Magalhães Arantes, ABMP - Associação Brasileira de Magistrados, Promotores e Defensores Públicos da Infância e da Juventude,Aldeias Infantis SOS Brasil, CONTAG - Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura, MNMMR - Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua,Criança Segura, CFESS - Conselho Federal de Serviço Social,CECUP - Centro de Educação e Cultura Popular, OAB - Ordem dos Advogados do Brasil,


- representantes suplentes:


ACM - Federação Brasileira das Associações Cristã de Moços, Sociedade Literária e Caritativa Santo Agostinho, MNDH - Movimento Nacional de Direitos Humanos, CUT - Central Única dos Trabalhadores, Instituto Alana, FENATIBREF - Federação Nacional dos Empregados em Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas, ANCED - Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, SBP - Sociedade Brasileira de Pediatria, FENAVAPE - Federação Nacional das Associações para Valorização de Pessoas com Deficiência, Fundação Fé e Alegria do Brasil, Fundação ABRINQ: Denise Maria Cesário, Conselho Latino Americano de Igrejas, MORHAN - Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase, Escoteiros do Brasil: David Marcial Ortolan.


Qual o papel do Conanda?


O Conanda possui o dever e a competência constitucionalmente prevista de zelar pela devida e eficiente aplicação das normas de proteção às crianças e adolescentes no Brasil. Inclusive, para exercer tal dever, pode editar Resoluções, as quais são atos normativos  previstos no Art. 59 da Constituição Federal.


O que diz a Resolução 163 do Conanda?


Na Plenária do dia 13 de março de 2014 foi aprovada de forma unânime  a Resolução n. 163 que considera abusiva a publicidade e comunicação mercadológica dirigidas à criança (pessoa de até 12 anos de idade, conforme Art. 2o do ECA), definindo especificamente as características dessa prática, como o uso de linguagem infantil, de pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil, de personagens ou apresentadores infantis, dentre outras.


O documento normativo dispõe que é abusiva “a prática do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”, por meio de aspectos como linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores; trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança; representação de criança; pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil; personagens ou apresentadores infantis; desenho animado ou de animação; bonecos ou similares; promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil.


A resolução define, ainda, como ‘comunicação mercadológica’ toda e qualquer atividade de comunicação comercial, inclusive publicidade, para a divulgação de produtos, serviços, marcas e empresas realizada, dentre outros meios e lugares, em eventos, espaços públicos, páginas de internet, canais televisivos, em qualquer horário, por meio de qualquer suporte ou mídia, no interior de creches e das instituições escolares da educação infantil e fundamental, inclusive em seus uniformes escolares ou materiais didáticos, seja de produtos ou serviços relacionados à infância ou relacionados ao público adolescente e adulto.


A Resolução 163 do Conanda tem força normativa?


Sim. Como qualquer outra Resolução do Conanda, a Resolução n. 163 possui força normativa e vinculante. Assim, seu cumprimento integral é obrigatório.


Por ser um ato normativo primário previsto no Art. 59 da Constituição Federal, as Resoluções do Conanda possuem poder vinculante e devem ser seguidas e consideradas por todos os agentes sociais e estatais.


Um exemplo paradigmático da força de uma Resolução de um Conselho Nacional ligado ao Poder Executivo, como o Conanda, é a atuação do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), o qual editou inúmeras Resoluções vigentes e vinculantes para toda a sociedade, em especial a Resolução n. 237, que determinou as normas, atribuições, funções e competências para o licenciamento ambiental, o qual intervém fortemente nas atividades empresarias de exploração do meio ambiente.


Ainda, em discussão travada no Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da validade da Resolução n. 7 do CNJ, que proibiu a prática do nepotismo no Poder Judiciário, o Plenário decidiu veementemente pela legitimidade e competência do Conselho Nacional para editar Resoluções, posto que elas são consideradas atos normativos primários.


Dessa forma, não restam dúvidas sobre o poder vinculante e da vigência da norma editada pelo Conanda na Resolução n. 163.


O Conanda pode aprovar uma Resolução como essa?


Sim. Dada à competência e legitimidade democrática do Conanda para “elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução”, especialmente por meio de Resoluções, o Conselho possui toda a competência para coibir e regular práticas que violem quaisquer direitos da criança e do adolescente no Brasil.


Dentre tais práticas está a publicidade infantil, a qual comprovadamente se aproveita da vulnerabilidade da criança para persuadi-la ao consumo de um produto ou serviço, desrespeitando sua condição de indivíduo em desenvolvimento e atentando contra seu direito à inviolabilidade física e psíquica, além de contribuir para o aumento de problemas sociais como a obesidade infantil, a violência, a erotização precoce, dentre outros.


Qual o efeito prático dessa Resolução?


O efeito prático dessa Resolução é a ilegalidade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, pessoa de até 12 anos de idade, conforme art. 2o do ECA.


A referida ilegalidade advém da Lei 8.078 de 1990, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), que proibiu a publicidade abusiva em seu art. 37, caput. Vale lembrar que a publicidade abusiva é aquela que atenta contra valores sociais, como exemplifica, de forma não taxativa, o § 2o do mesmo artigo:


§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.


Uma vez que a Resolução n. 163 define que será abusiva a prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, bem como explicita os aspectos e as características dessa prática, caberá ao aplicador da lei fiscalizar e coibir as ilegalidades com fundamento no CDC, aplicando as sanções nele previstas.


Como ficam as publicidades de produtos e serviços que antes da Resolução n. 163 eram direcionadas ao público infantil?


Toda publicidade que até então tinha como alvo o público infantil deve ser alterada e direcionada ao público adulto, o qual é o verdadeiro responsável por fazer a devida mediação da mensagem comercial com as crianças.


Por que a `Nota Pública – Publicidade Infantil’ assinada pela ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANUNCIANTES – ABA, a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE AGÊNCIAS DE PUBLICIDADE – ABAP; a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMISSORAS DE RÁDIO E TELEVISÃO – ABERT; a ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JORNAIS – ANJ; a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RADIODIFUSORES – ABRA; a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RÁDIO E TELEVISÃO – ABRATEL; a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TV POR ASSINATURA – ABTA, a ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE EDITORES DE REVISTAS – ANER; e, a CENTRAL DE OUTDOOR não reconhece a legitimidade e vigência da Resolução n. 163?


Os que querem a manutenção da prática da comunicação mercadológica infantil enxergam na Resolução uma ameaça aos seus interesses e, por isso, tentam deslegitimar sua força e abrangência, alegando que a Resolução não teria poder vinculante.


A nota, em análise, pode refletir uma falta de conhecimento do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente, bem como do ordenamento jurídico brasileiro de proteção aos direitos da criança, do adolescente e do consumidor ou, ainda, o descompromisso social dos signatários no âmbito do art. 227 da Constituição Federal, que determina a responsabilidade conjunta de todos os agentes sociais na proteção e promoção dos direitos da criança e do adolescente no Brasil.


Por que ainda existe publicidade e comunicação mercadológica direcionada à criança na televisão, internet e nos pontos de venda, por exemplo?


Porque anunciantes, o mercado publicitário e veículos de comunicação insistem em anunciar para as crianças, agindo em desconformidade com a legislação vigente de proteção dos direitos da criança e do consumidor, em especial o Art. 37 do Código de Defesa do Consumidor que proíbe a prática da publicidade abusiva.


Cabe, agora, aos agentes e órgãos responsáveis tanto do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente, como do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, fiscalizarem as violações à legislação nacional e aplicarem as sanções cabíveis. Dentre os órgãos destacam-se o Ministério da Justiça, os Procons, o Ministério Público e a Defensoria Pública.


O que devemos fazer em relação a todas as publicidades infantis que vemos?


Além de demonstrar sua indignação diretamente aos perfis das empresas em redes sociais, as publicidades infantis devem ser denunciadas aos órgãos competentes do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente e do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, como o Ministério da Justiça, os Procons, o Ministério Público e a Defensoria Pública.


Ainda, uma reclamação formal pode ser feita diretamente às empresas anunciantes por meio dos canais de comunicação com o consumidor que elas obrigatoriamente devem disponibilizar.


Para facilitar, modelos e petições para realizar as denúncias podem ser encontradas na página do projeto Prioridade Absoluta.


O que acontece se alguém entrar na Justiça? Podem derrubar essa resolução?


Não é possível prever o que pode ocorrer em âmbito Judicial. No entanto, ressalta-se que a Resolução n. 163 encontra amplo respaldo e legitimidade jurídica.


Como ficam os Projetos de Lei no Congresso Nacional que abordam o tema?


O acompanhamento dos Projetos de Lei no Congresso Nacional continua de fundamental importância para que se evite retrocessos.


No entanto, cumpre ressaltar que qualquer texto proposto ou avaliado deve apresentar elementos ainda mais protetivos aos direitos da criança, uma vez que a Resolução n. 163 estabeleceu um novo e detalhado patamar de proteção frente à abusividade da publicidade infantil.

 

[Fonte: Instituto Alana]

 

[Opinião] Publicidade para crianças: “Mãe, eu quero. Você compra?

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Por Rosely Arantes*


A frase do título, que muitas vezes culmina em uma discussão, tem feito parte do dia a dia da maioria das famílias brasileiras nos últimos tempos. Discutir os limites das crianças frente ao que é apresentado nas televisões, via publicidade, é algo que muitas vezes está além do alcance das mães, pais e até educadores. Não raro vemos matérias, baseadas em pesquisas ou estudos psicológicos, que desvendam os caminhos para a atuação, para não dizer manipulação e controle, sobre o público infantil numa tentativa de reforçar o apelo de compra.


Contrariando um caminho trilhado, há anos, por diversos países com democracias consolidadas, como a Suécia, Alemanha, Austrália, Espanha (Catalunha), Chile, Estados Unidos, Holanda, Nova Zelândia, Portugal e Reino Unido, o Brasil continua permitindo que a publicidade seja direcionada ao público infantil. Mesmo que a criança e o adolescente sejam considerados públicos prioritários pela Constituição brasileira e reforçado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), eles continuam sendo alvo das propagandas e do merchandising, instrumentos da publicidade,que os utilizam como mecanismo de “fidelização” de um futuro consumidor e, ultimamente, definidor de compras da família, numa estratégia de infantilizar o adulto e dar uma ideia de maturidade às crianças, numa troca de responsabilidades vil.

O que é mais estranho é que todas essas ações, que são consideradas violações de direitos, dão-se no espaço público do audiovisual, ou seja, nas rádios e televisões, que são concessões públicas. Para ser mais clara, é de propriedade do Estado o espectro eletromagnético que é temporariamente cedido a determinadas empresas de comunicação. E como parte das regras desta concessão está a atenção ao que já é estabelecida em lei, como informado no parágrafo acima. Como afirma o mestre em Ciência Política, pela Universidade de São Paulo, professor Guilherme Canela, “se o Estado (governo e sociedade) acorda institucionalmente que esse recorte etário merece prioridade absoluta, à mídia não é conferido nenhum salvo-conduto para se escusar de cumprir suas responsabilidades, especialmente porque radiodifusores são operadores de concessões públicas do Estado e da sociedade”.

Programação para todos os públicos

Esse “descumprimento” do acordo entre o Estado e o mercado ultrapassa também outras esferas, como a regulamentação do setor, defendida por organizações da sociedade civil e pesquisadores da área. No Brasil, o próprio mercado publicitário regulamenta toda a publicidade mercadológica por meio do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), que estabelece as normas e julga os casos que porventura sejam enviados por entidades representativas ou cidadãos comuns. Para o presidente da entidade, Gilberto Leifert, as tentativas de regulamentação revelam que o Estado não acredita no poder de discernimento do cidadão. “É um evidente paradoxo. Muitas vezes, o projeto de lei ou a intervenção do Estado sugere que o cidadão é considerado plenamente capaz apenas para constituir família, eleger representantes políticos, pagar impostos, mas seria incapaz de fazer escolhas a partir da publicidade”, afirma.

Outra prova da complexidade do que estamos falando se deu com a retirada do programa infantil diário TV Globinho, substituído por um voltado para o público adulto capitaneado pela jornalista Fátima Bernardes nas manhãs na TV Globo. A emissora, que já chegou a apresentar O Sítio do Pica-Pau Amarelo, Vila Sésamo e Xou da Xuxa, apresentou como argumentação que a grade infantil não dá nem audiência, nem receita publicitária, e diz seguir tendência internacional de deixar as crianças para a TV paga. Segundo a empresa, o canal fechado seria um espaço menos sujeito a controle externo, como classificação indicativa, sugerida pelo governo e proibições à publicidade infantil (como limite à propaganda de alimentos e ao uso de desenhos para seduzir o público-alvo). “O segmento infantil está na TV paga porque lá não tem censura nem restrição à propaganda”, diz Luís Erlanger, diretor da Central Globo de Comunicação. Importante questionar, neste caso, como ficam as crianças que não têm TV paga, já que o lazer e entretenimento também são direitos e a TV é uma concessão pública? Isso sem falar que como concessionária de um serviço público a empresa deve cumprir com o regulamento que prevê programação para todos os públicos.

Direito de ter brinquedo

Mas muitas pesquisas e estudos também são realizados para medir o impacto da publicidade no desenvolvimento psíquico e emocional, atual e futuro, das crianças e adolescentes. E os resultados são alarmantes. Segundo o Instituto Alana, organização não governamental de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes em relação ao consumo em geral, bem como ao excessivo consumismo ao qual são expostas, as crianças são mais vulneráveis que os adultos e sofrem cada vez mais cedo com as graves consequências relacionadas aos excessos do consumismo, por estarem em pleno desenvolvimento. Para o Alana, são consequências danosas à exposição excessiva a obesidade infantil, a erotização precoce, o consumo precoce de tabaco e álcool, o estresse familiar, a banalização da agressividade e violência, entre outras.

Mas como não se mudam leis e costumes num passe de mágica, algumas tentativas de minar o poderio do mercado e proteger as crianças têm sido realizadas. Cabe registrar que está em tramitação no Congresso Nacional, há mais de dez anos, um projeto de lei que proíbe a publicidade de produtos infantis (PL 5921/01). O texto, de autoria do deputado Salvador Zimbaldi (PDT-SP), que faz parte da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, já foi alterado nas comissões de Defesa do Consumidor e de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio. Para o relator, “é necessária uma lei sobre publicidade infantil porque o Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar) não tem sido eficaz”. Depois que Zimbaldi apresentar o parecer, a proposta seguirá para a Comissão de Constituição e Justiça em caráter conclusivo.

O anteprojeto encontra bastante resistência por parte do setor empresarial, especialmente o de brinquedos. Para o presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), que também é presidente da Fundação Abrinq, Synésio Batista, a publicidade infantil é fundamental já que toda criança tem o direito de ter brinquedo e a publicidade ajuda a aumentar a produção, despertando o interesse e deixando a criança informada, “não se oferece um produto dizendo o que ele não tem”, afirma Batista.

Discurso mágico

Outra forma de quebrar o bloqueio empresarial está na capacidade de organização da sociedade. Já é possível perceber que há intervenção de diversos setores desta na defesa pela regulamentação e isso tem mexido na estrutura de poder e aberto diversas frentes de debates sobre o tema criança e consumismo, especialmente nas redes sociais. Por conta disso, algumas campanhas publicitárias foram tiradas do ar. A mais recente foi o parque Mundo da Xuxa, que foi notificada pelo Procon/SP, e não pelo Conar, que apresentou como justificativa “o potencial de induzir o público infantil a atitudes que gerem risco à segurança e a saúde”. Importante registrar que esta campanha só saiu do ar depois que o coletivo Infância Livre de Consumismo (ILC), junto com outros movimentos e organizações, registrou queixas contra a propaganda. Este é outro exemplo de organização. Já as empresas Nestlé, Mattel, Habib’s, Dunga Produtos Alimentícios Ltda. (Biscoito Spuleta) e Roma Jensen (Roma Brinquedos) receberam as multas, também do Procon/SP, na semana passada, num total de mais de R$ 3 milhões, por campanhas publicitárias abusivas dirigidas ao público infantil. Estas últimas também foram resultado de mobilização de organizações da sociedade civil.

O Infância Livre de Consumismo (ILC) é um coletivo de pais, mães e cidadãos inconformados com a publicidade dirigida às crianças que nasceu como contraponto a campanha “Somos todos responsáveis”, promovido pela Associação Brasileira das Agências de Publicidade (ABAP). “Por mais informadas e conscientes que sejam as famílias, os pais não têm como combater um discurso mágico e atraente feito por adultos pertencentes a grandes e poderosos conglomerados empresariais, com alto poder econômico, que detêm pesquisas psicossociais, de mercado e até mesmo neurológicas”, avalia Marina Machado de Sá, publicitária e mestre em Políticas Públicas, uma das fundadoras do coletivo Infância Livre de Consumismo (ILC).

“Atentado à liberdade de expressão comercial”

Já a campanha “Somos todos responsáveis” defende que apenas os pais seriam os responsáveis pela proteção das crianças diante dos estímulos abusivos das propagandas ao consumismo. Para eles é importante, necessária e sadia submeter às crianças à informação. “Se a ideia é proteger as crianças da mídia, não adianta mais desligar a televisão, abaixar o volume do rádio e ficar longe das bancas de jornais”, diz Dalton Pastore, presidente do Conselho Superior da Abap. “A questão é mais complexa e merece uma discussão mais profunda, baseada em educação, e não em proibição”, complementa.

No entanto, atitudes como esta isentam o Estado e o mercado (empresas e publicitários) de quaisquer responsabilidades sobre a publicidade dirigida às crianças. “Nesta relação, fica patente a vulnerabilidade das famílias, da comunidade e da própria criança diante do discurso mercadológico”, alerta Mariana Sá.

Um alerta interessante feito por essas organizações diz respeito aos problemas causados ao meio ambiente. Segundo o ILC, o excesso de propagandas e conteúdo manipulatório dirigidos ao público infantil dificulta a educação cidadã e sustentável e vai contra a formação de um consumidor consciente, justo num momento em que o mundo repensa formas de consumo sustentáveis.

Assim cabe uma reflexão sobre o que está por trás dessa resistência do mercado no diálogo sobre a regulamentação do setor. É importante e urgente entender que isso é uma das pontas do iceberg chamado democratização da comunicação. Tema este que merece ser aprofundado, especialmente para entender o porquê de o discurso mercadológico estar baseado na censura e na defesa da liberdade de expressão. Como bem afirma Gilberto Leifert, a proibição de propaganda infantil é um “atentado à liberdade de expressão comercial”. Num país que acabou de sair de um processo de ditadura onde o calar foi um dos recursos mais (bem) utilizados, qualquer aceno que relembre esse momento é evidentemente danoso, significativo e causa aversão. Segundo o coordenador executivo da organização Andi Comunicação e Direitos, Veet Vivart, “associar a regulação, que é um instrumento democrático, interdita o debate”.

Cúmplices de violações

Daí surge outro debate sobre o porquê da importância dos pais, mães e demais responsáveis pelo cuidado direto de crianças e adolescentes, dizerem “não” aos constantes pedidos de “compra” emitidos por eles. Dizer não além de ser educativo, ajuda a criançada a entender que a vida não é o “céu de brigadeiro” que a TV mostra. Dito isso, é salutar compreender que um dos recursos da publicidade é o de se aproveitar do (grande) tempo que as crianças ficam exposta a programas televisivos, longe da presença de adultos, para impor uma lógica de consumo desenfreado, por meio de técnicas de aborrecimento (onde vencem pelo cansaço), aumento do volume no momento dos comerciais, o uso constante de merchandising, entre outras. Para se ter uma ideia do que estamos falando, as crianças brasileiras ficam até cinco horas na frente da TV, diferentemente de outros países, inclusive os Estados Unidos. No final, temos crianças obesas, sedentárias, doentes e mal informadas, para não aprofundar mais neste debate.

No final, a maioria dos pais e mães que trabalham fora de casa e, portanto, ficam longe de seus filhos, vê-se obrigado a comprar, atendendo aos pedidos insistentes do filho, na tentativa de suprir o tempo perdido. Mas é preciso entender que não se compra tempo, atenção e afeto, especialmente das crianças. Faz-se necessário e urgente refletir e criar estratégias de recompensa desse tempo a partir de momentos de aproximação, conversa, troca e atenção, onde os pais e mães fiquem com suas crianças e promovam momentos de interação com eles. Isso vale muito mais do que um brinquedo, na maioria das vezes caro, que será deixado de lado, em breve. Sem contar que é fundamental avaliar o pedido de compra. Afinal, é algo que vai ser realmente utilizado pela criança, é adequado para a idade, vai ajudá-lo de alguma forma, que habilidades serão desenvolvidas? Porque do contrário, a velha resposta do “porque agora não tenho dinheiro”, atrapalha por não acrescentar, por não ajudar a pensar de forma sustentável e educativa. O “não” tem de estar embasado em outras motivações.

Importante resgatar que o processo de debate e regulação proposto pela sociedade civil é algo que deve inclusive acontecer dentro da esfera pública do Estado. Afinal,cabe a este ente promover e induzir os processos de garantia de direitos, uma vez que ele é o representante formal, referendado noutro processo democrático de consulta pública.

Por fim, quero lembrar que este é mais um ano de eleições e que estaremos escolhendo a/os nossa/os futura/os representantes à Prefeitura e Câmara de Vereadores. Em dois anos, escolheremos a/o presidente, governadores, senadores e deputados. E quantas vezes procuramos saber qual o plano de governo que eles propõem, nossas demandas de focar as crianças estão contempladas ou mesmo se acompanhamos esses compromissos pleiteados durante a campanha? Acredito que não. Normalmente preferimos nos omitir sob a desculpa de que política é lugar de corrupção, privilégios e impunidade. No entanto, essa postura nos coloca como cúmplice das inúmeras violações direcionadas a população infanto-juvenil brasileira.


*Rosely Arantes é jornalista, educadora popular e especialista em Gestão Estratégica Pública pela Universidade de Campinas – Unicamp

[Fonte: Agência Jovem]

 

Crianças agem como adultos em comercial polêmico veiculado no Mexico

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O comercial produzido pela ONG “Nuestro México del Futuro” está dando o que falar. Autoridades mexicanas quiseram censurar o vídeo na justificativa de que viola os direitos das crianças.

A alegação é fundamentada nas cenas de tráfico, assaltos e demais problemas presentes no cotidiano da população.

No vídeo a seguir algumas crianças realizam, de maneira bastante natural, ações que são obviamente atividades adultas. As cenas revelam um lado bastante pejorativo da sociedade, levando-nos a crer que as crianças que agora são vistas apenas como nossos queridos filhos acabam imitando as atitudes reprováveis dos seus pais.

 

Assista:


[fonte: Pragmatismo Político]

 

Estudo indica novas relações e desafios: conheça a tese da professora Nélia Mara. Em entrevista, ela fala sobre a relação das crianças com as redes online

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Por Marcus Tavares

 

A professora Nélia Mara defendeu, em fevereiro deste ano, sua tese de doutorado, em Educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Com o título Você tem face?, o estudo pesquisou as experiências infantis com as redes sociais online, tendo como plataformas de investigação o Orkut e o Facebook.


“Em 2009, meus alunos de seis anos, na classe alfabetização, perguntavam frequentemente se eu tinha Orkut e revelavam, com frequência, novidades sobre seus perfis. Enquanto isso, o grupo de pesquisa do qual faço parte desde 2005, Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea, coordenado pela professora Rita Ribes, na UERJ, voltava seu foco de estudos para a relação das crianças com as mídias digitais, oportunizando a sistematização teórica e metodológica das minhas questões nascidas na escola. Buscava entender porque as crianças estavam no Orkut, como acessavam e o que gostavam de fazer nas redes sociais online. Dois anos depois, as crianças migraram para o Facebook e, em pouco tempo, muitas tinham suas primeiras experiências com as redes sociais nele. Por isso, os dois sites foram as principais plataformas de análise”, conta.


Segundo Nélia, o grande desafio foi conseguir construir uma metodologia que não desprezasse a dimensão técnica do fenômeno que pretendia estudar e que conseguisse captar, de alguma forma, a fugacidade das relações online e, em última instância, a dinâmica da cultura contemporânea. “Foi assim que nasceu uma pesquisa online, em que eu conversei com crianças entre oito e onze anos através dos chats, além de observar constantemente todas as atualizações nos perfis infantis”, destaca.


Em entrevista à revistapontocom, Nélia conta detalhes do estudo e suas principais conclusões sobre a relação das crianças com as redes sociais online. “Desejo que a entrevista seja o começo de uma conversa com quem se interesse pelo tema e que traduza também num convite para a leitura da tese”, afirma.


Acompanhe a entrevista:


revistapontocom - O que leva as crianças a participarem, cada vez mais, das redes sociais?

Nélia Mara - As redes sociais despontam na fase atual da cibercultura como uma potência que inaugura novas experiências nas formas de se relacionar, aprender, conviver, se expressar… Quando me interessei pelo tema, busquei selecionar os sites que as crianças mais acessavam, como forma de conhecer suas experiências e preferências na internet. Queria ir onde elas estivessem. E apesar de, em 2009, época em que surgiram os primeiros movimentos da pesquisa, eu ter conhecido alguns sites de rede social voltados especialmente para crianças, estes não eram sequer citados pelas crianças quando as indagava sobre o que faziam na internet. Talvez esse seja um bom exemplo para pensar que as crianças não vivem num mundo apartado dos adultos, mas estão inseridas na cultura e dela participam ativamente. As crianças querem estar onde todos estão.


revistapontocom - Como podemos definir as crianças que participam das redes sociais?

Nélia Mara - São crianças que inauguram experiências que situam a infância em um lugar social inédito na cultura. A pesquisa me permite afirmar que a presença e a participação das crianças nas redes sociais online possibilitam que as vozes das crianças habitem o ciberespaço numa relação de horizontalidade com as vozes dos adultos. Estão todos lá, convivendo, interagindo, comunicando. Isto quer dizer que a possibilidade de as crianças serem emissoras de conteúdo guarda uma potência que liberta a infância dos estatutos modernos calcados na ideia de menoridade e inferiorização em relação ao adulto. São crianças que burlam os protocolos dos sites – que é bom lembrar, ostentam uma proibição hipócrita, visto que atraem as crianças de forma velada –, criam e se apropriam cada vez mais de novas linguagens, novas formas de ser criança e de viver a infância. Para essas crianças, as redes sociais representam hoje, sobretudo, novas formas de interação e sociabilização. Elas jogam, brincam, conversam, assistem a vídeos, produzem vídeos, se informam, aprendem coisas novas, consomem. No entanto, é importante não perder de vista que a cibercultura, essa cultura em rede que vivemos hoje, nos afeta não só materialmente, mas, sobretudo, simbolicamente. Está em jogo a produção de novas linguagens, subjetividades, de novas formas de aprender, de se relacionar, novas relações com o tempo e com o espaço, o que é também vivido por quem não tem, necessariamente, um perfil no Facebook.


revistapontocom - São grandes as diferenças de formação, oportunidade, experiência e conhecimento entre crianças que acessam e as que não acessam as redes?

Nélia Mara - Pesquisas oficiais de cunho quantitativo sobre crianças e internet, como as realizadas pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (CETIC) em todo o território nacional, têm demonstrado o quanto a condição socioeconômica é fator que determina o acesso à internet, a frequência com que ocorre, bem como a posse de aparatos técnicos. Renda familiar, classe social e região do país – dada desigualdade no investimento das condições técnicas para a distribuição da conexão, se compararmos os dados da região norte com a sudeste, por exemplo – são elementos que interferem de maneira decisiva para a participação das crianças nas redes sociais. No caso específico da pesquisa que realizei, é importante dizer que não se adotou um recorte de classe, pois se buscou, inicialmente, dialogar com crianças que já possuíam perfis em sites de redes sociais e, num segundo momento, crianças que fizessem parte da minha rede de contatos. Dito isto, a pesquisa que realizei não se debruçou sobre um estudo comparativo entre as crianças que têm acesso e as que não têm. No entanto, se aceitamos a ideia de que a cibercultura nos afeta simbolicamente, a questão se complexifica e exige aprofundamento. Mas é inegável que a oportunidade de entrar em contato com o mundo através do seu próprio celular posiciona a criança no mundo de maneira diferente daquela que, sequer, tem o que comer. São, sem dúvida, experiências de infância distintas qualitativamente. Penso que autonomia e criatividade estão no centro da participação nas redes sociais online. Inclusive, as crianças precisam, muitas vezes, criar datas de nascimento fictícias para terem acesso a uma conta no site. Precisam criar um perfil com inúmeras informações sobre si. O próprio ato de apenas “curtir”, no Facebook, alguma postagem, já evidencia uma expressão. Solidariedade e ética são noções por demais subjetivas para serem definidas aqui como algo propiciado pelas redes sociais. As crianças que estão nas redes sociais estão em diálogo com o mundo – elas têm acesso à informação, são encorajadas a se mostrar, a emitir opiniões, a compartilhar o que gostam, a conversar. Mas a formação se dá a todo momento: para a leitura, para a escrita, para a relação com o outro, para a construção da própria identidade, para a construção das noções de privacidade, formação para o consumo… Por isso, ao mesmo tempo em que é indiscutível reconhecer a centralidade que ocupam hoje as redes sociais na vida de muitas crianças, é indispensável pensar em formas articuladas de oferecer uma mediação que possam amplificar e qualificar todas estas fontes de in(formação).


revistapontocom - Quando falamos de mediação pensamos no papel dos adultos. As crianças estão sozinhas na rede?

Nélia Mara - Não, elas não estão sozinhas, ainda que acessem a internet sem ninguém por perto fisicamente. Penso que o grande desafio, hoje, para pais, professores e pesquisadores é pensar em novas formas de mediação online. Dado o caráter diferenciado das tecnologias digitais, a mediação não pode ser pensada sobre as mesmas bases, já consolidadas, das mídias eletrônicas. A mobilidade, por exemplo, é uma realidade e uma tendência também entre as crianças, já que a miniaturização dos aparelhos produz também condições para um uso mais individualizado. Se, por um lado, a impossibilidade de acompanhar fisicamente os acessos das crianças à rede pode sugerir menos possibilidade de acompanhamento dos adultos ao que as crianças acessam, há que se compreender que, online, as crianças nunca estão sozinhas. Estar nas redes sociais pressupõe estar em diálogo com alguém, seja um amigo, um familiar, um estranho ou mesmo uma empresa. O “estar com” é a essência do “estar em rede”. Por isso, friso, nosso papel enquanto adultos é buscar o diálogo com as crianças também online, fazendo-se presente também nas redes sociais. Há responsáveis que, sim, marcam sua presença de diferentes formas nos perfis de seus filhos; outros não. Há uma diversidade nas formas como a permissão do acesso às redes sociais acontece nas casas das crianças: há pais que criam os perfis dos filhos, incentivando que coexistam em rede; também há filhos que criam contas para seus pais, em busca de “atualizá-los”. Há famílias, por exemplo, que impõem uma idade mínima para que a criança conquiste o direito de estar numa rede social online, entendendo que é preciso crescer para ganhar novas responsabilidades, mesmo que não seja uma idade inferior à recomendada por sites como o Facebook ou o Orkut. Há pais que usam seus perfis com os filhos, um uso compartilhado. Em outros casos, e aqui já me posiciono como forma de dizer que penso ser a postura mais interessante, cada indivíduo da família possui um perfil, mas os pais e demais adultos interagem online com a criança frequentemente, além de conversarem em casa sobre o assunto. É uma forma de estar junto em rede, de acompanhar o que a criança faz, com quem interage, o que comunica, mas permitindo que ela tenha seu espaço, que ela construa seu perfil com suas características, preferências, fotos que gosta, podendo expressar a singularidade da sua identidade na internet.


revistapontocom - E quanto à escola?

Nélia Mara - A escola, de maneira geral, ainda não consegue ocupar o espaço de quem pode e deve colocar esse assunto como questão curricular porque ainda se baseia na lógica da vigilância, da proibição ou mesmo da didatização das tecnologias sob um viés, algumas vezes, empobrecedor e distante dos usos que as crianças fazem fora das salas de aula. Há instituições que, inclusive, proíbem o uso de aparelhos em suas dependências, parecendo fechar-se a uma realidade que está posta. Em paralelo, crianças postam, em seus perfis, fotos na escola em tempo real, o que denuncia que, a despeito de normas meramente burocráticas, as crianças estão em rede, se conectam de seus dispositivos móveis e, na maioria das vezes, a escola não se oferece para o diálogo.


revistapontocom - E ao contrário do que se pensa, as crianças têm conhecimento dos perigos da internet, não é isso?

Nélia Mara - As crianças demonstram ter muita informação sobre os perigos a que, possivelmente, estamos todos expostos na internet e nas redes sociais. Essas informações e ressalvas chegam de variadas fontes: a família conversa e instrui, a televisão noticia casos variados sobre o assunto e, mais timidamente, mas progressivamente, a escola também vai se envolvendo neste debate, ainda que o uso de sites de redes sociais seja comumente proibido em seus espaços. As crianças mostraram que elegem critérios para aceitar ou recusar pedidos de amizade e eu fui, inclusive, recusada por muitas quando busquei realizar a pesquisa com crianças indicadas por amigos, desconhecidas para mim. As recusas me obrigaram a redesenhar os critérios de escolha dos interlocutores e foram fundamentais no percurso da pesquisa. Ao longo do processo, também me dei conta, em diálogo com outras pesquisas a que fui tendo acesso, que as redes sociais são espaços de encontro entre pessoas que têm ou já tiveram algum tipo de relação face a face. Assim, sob esta lógica, as recomendações dos pais aos filhos sobre os perigos de dar atenção a pessoas estranhas é incorporada também para a vida online. É possível que esta constatação na minha tese, que nem sempre emerge em outros estudos, tenha a ver com a abordagem teórico-metodológica que adotei na pesquisa. A minha premissa foi de que as crianças estão de forma ativa e autônoma nos sites de redes sociais e me interessou ver o que fazem, como usam, por que usam e, em última instância, o que comunicam sobre suas experiências quando estão em rede, enquanto sujeitos criativos e produtores de cultura que são. Há outros estudos que, embora se detenham em temática similar, se fundamentam em concepções de infância que remetem aos pilares modernos de vulnerabilidade, inabilidade e menoridade, já elencando como premissa que há perigos, há uma proibição burocrática e, portanto, as crianças não deveriam estar lá. Penso que falamos, portanto, de lugares distintos; logo, nos posicionamos de formas diferentes em relação às crianças e às experiências de infância, conduzindo as pesquisas por caminhos que, nem sempre, se encontram. É preciso enfatizar aqui que reconhecer que as crianças entendem os perigos a que estamos expostos na internet não representa ignorar a importância do adulto no que diz respeito ao seu papel de proteção da criança. Friso que é fundamental que o adulto assuma o seu lugar de quem se oferece ao diálogo e aponta o caminho seguro. No entanto, me preocupa observar como essa relação se traveste, muitas vezes, em controle e vigilância por parte dos pais. Se é certo admitir que estamos todos, adultos e crianças, aprendendo a viver em rede, também é preciso compreender que a produção compartilhada de sentidos sobre o que nos desafia é um processo que se dá em diálogo.


revistapontocom - A participação de crianças e adultos no ambiente online vem estabelecendo um novo tipo de relacionamento?

Nélia Mara - Essa pergunta conduz ao debate pertinente em torno da questão geracional que marca os estudos sobre crianças e tecnologias digitais. Quando nos espantamos com a intimidade dos bebês com um tablet nas mãos, evidenciamos que a questão geracional está posta. Mas é importante não perder de vista que a relação com as mídias sempre esteve atravessada por essa tensão. O que parece complexificar a questão no contexto cibercultura é que a velocidade das transformações e a obsolescência como marca dessa era nos coloca, enquanto adultos, num lugar frágil de quem também se vê inseguro e rendido pelas constantes novidades, tão bem recebidas e incorporadas pelas crianças. Elas lidam com os aparatos de forma lúdica, criativa e desbravadora, enquanto o adulto, com um olhar mais cristalizado para a realidade, se relaciona de forma menos espontânea. Mas, se as redes sociais podem ser concebidas como lugares de encontro, podemos percebê-las na potência do encontro entre adultos e crianças, e não como algo que produz algum tipo de impacto negativo, ou que gera um abismo geracional.

[Fonte: Revistapontocom]

 


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